Essas pessoas chamadas crianças

Às vezes, os adultos, esses seres conscientes, responsáveis, limpinhos e pontuais, consideram as crianças como “esse grupo de seres malcheirosos, barulhentos, irrequietos, irresponsáveis, para quem o tempo é sempre curto.” Mas a verdade é que, a categoria “criança”, ou “idoso”, ou “adolescente” ou “doente” ou “bebé”, não é um grupo especial de seres humanos. Somos todos nós. Qualquer uma destas categorias descreve uma etapa da nossa vida, com as suas características próprias e o seu ritmo específico. Serão as crianças lentas ou os adultos é que andamos muito rápido? Serão as crianças desarrumadas ou o mundo onde elas vivem é feito para esses gigantes que usam mobília maior do que elas e insistem em pendurar a roupa em cabides inacessíveis?

Caro leitor, coloque-se de joelhos e circule pela sua casa. Se quiser pode até rastejar. Verá o que veem os bebés e as crianças. O nosso mundo de adultos é ENORME! Para tudo as crianças têm de subir, ao entrar no carro, ao sentar-se à mesa, ao ir para a cama, ao lavar os dentes… Não admira que passemos o tempo a profetizar-lhes que vão cair!… Vestimos-lhes collants por baixo das calças, camisolas que picam e insistimos em pentear o cabelo para fazer uns totós elegantes…, mas talvez elas concordem connosco: não há roupa como o pijama! Bem, talvez o fato de treino. Mas, como queremo-los agasalhadinhos e compostos, insistimos num colete de forças feito de aparências politicamente corretas. Confesse, caro leitor, gosta de sapatos novos? Daqueles que magoam no calcanhar? Pois, as crianças preferem os ténis rotos ou as chuteiras dos primos dois números acima, porque não magoam e são perfeitos para jogar à bola.

Por mais que se fale em direitos das crianças, por mais que se encham os intervalos televisivos de publicidades natalícias de brinquedos que fazem cocó e tudo, o mundo não está feito para as crianças. Os adultos, donos e senhores do mundo, são muito injustos com as crianças. Muito injustos com as crianças. Na linguagem, no tempo que lhes dedicam, na forma como se constroem as casas, as escolas, os parques… Onde é que anda a areia dos parques de baloiços? Onde é que há recreios escolares com árvores e terra? Bem, sem falar na duração dos intervalos para usufruir do recreio… A sério que queremos que elas aprendam o que são minorias étnicas no 2º ano de escolaridade, mas não sabem atar os atacadores ou barrar manteiga?… Esperem. Algum de vós, adulto que me lê, gosta de se calçar sentado no chão?! As crianças também não. E não poderíamos pôr um banco ou sofá da sua altura junto aos sapatos para que elas possam aprender esta tarefa difícil? Já agora, neste tempo frio de Inverno, com a água gelada pela manhã, levante a mão quem lava a cara com essa água…. Conheço quem faça correr a água até estar quentinha, quem se limpe à toalha apenas ou passe um disco de limpeza com um produto qualquer… porque está muito frio. Mas se é a criança que se queixa da água fria, leva um “anda lá, depois aqueces!” ou um “fecha a torneira que estás a gastar muita água!” …

Oiço dizer muitas vezes que “criança não tem quereres!” ou “ela nem dá conta!” … Pois é, caro leitor, mas tenho uma notícia a dar-lhe. Por incrível que possa parecer, a criança é uma pessoa. A CRIANÇA É UMA PESSOA. E como qualquer adulto, a criança SENTE, a criança DÁ CONTA, a criança DESEJA, a criança PENSA. As crianças têm estados emocionais desde a vida intrauterina, que se estruturam melhor ao longo do 1º ano de vida. As crianças, mesmo as mais pequenas, sentem dor, medo, pânico, saudade, tristeza, alegria, prazer, euforia, humilhação, indiferença, solidão. Por ausência de um córtex cerebral maduro, as crianças sentem tudo de forma mais intensa e com menos filtro. Por isso se atiram para o chão quando estão irritadas. Aos adultos, também apetece muitas vezes fazer o mesmo, mas conseguimos autocontrolar-nos porque temos hardware suficiente. As crianças SENTEM tudo. E sentem-se muito mal quando os adultos falam demais. Ora veja: O top das coisas que os adultos dizem injustamente às crianças:

– Já vai! (é certo e sabido que vamos demorar pelo menos 20 min)

– Depois a mãe dá-te! (é certo e sabido que nunca mais nos vamos lembrar disso)

– Não pode ser, o pai não tem dinheiro. (É certo e sabido que a criança sabe que não é por isso que não lhe damos o chupa-chupa)

– Se não comes a sopa vem aí o polícia e leva-te! (A sério que continuamos a associar a polícia a algo mau?! E quando quisermos que eles recorram a um para pedir ajuda?!)

– Não chores! (Alguém se atreveria a dizer isto a um adulto? Não chorar ajuda a quem?)

– Vês, eu avisei-te! Agora livra-te de te queixares! (Mas será que todos os adultos aprendem à primeira e só por teoria? Quantos de nós só percebem algo depois de bater com a cabeça na parede!?)

– As desculpas não se pedem, evitam-se! (Então e passamos a vida a dizer-lhes que têm de pedir desculpa para quê? E nós, pedimos desculpa? E nunca, nunca mais erramos?)

– Como é que se pede? Se faz… (Sr. adulto, costuma ordenar em tom sério ou pedir se faz favor?)

– Olha que depois tens de arrumar os legos todos que tirares da caixa!… (Alguém se consegue maquilhar sem tirar os produtos da bolsinha?!)

– Quando tiveres idade eu explico-te… não vais entender agora… (Então expliquem-lhe de uma forma que ela entenda, sim? Se deixamos a criança imaginar as situações, faz sempre um filme muito pior na sua cabeça…)

– Não te metas na conversa, não é contigo! (Mas há alguma conversa em que deixemos que se inclua ou seja só para ela?!)

– Esta não aceita o “não” (E qual é o adulto que lida bem com o não de uma criança?!)

– Não sabes esperar… (Querem mesmo falar das buzinadelas no trânsito porque passaram 2 microsegundos desde que o sinal passou a verde?!)

– Só estás a chamar a atenção! (Sim, as crianças querem a atenção dos adultos, e se não a recebem encontram formas de a conseguir!)

Caro leitor, convido-o a fazer comigo um exame de consciência e a recordar-se do tempo em que era criança. Não faça com elas o que não gostou que lhe fizessem a si. Há outro tom para educar sem ser o alto, há outra expressão facial sem ser a séria, há outra velocidade sem ser a rapidíssima. As crianças não querem brinquedos, querem companhia. Querem adultos que lhes dediquem tempo, sentados à sua altura e olhem para elas. Querem calma, risos, boa disposição e cumplicidade. E querem, como qualquer pessoa, RESPEITO. Vamos, neste Natal, estar lá para elas?

Votos de um Feliz Natal a todas as crianças, aos que são como elas, aos que se esqueceram de como eram, aos que andam à procura da criança que mora dentro de si e àqueles a quem a infância foi (e é) roubada e se tornaram adultos stressados e sérios.

Cátia Almeida

Pedopsiquiatra CSSMH